O Arquivo Nacional de Cabo Verde e a experiência da investigação histórica em arquivos

O Arquivo Nacional de Cabo Verde e a experiência do investigador José Silva Évora na investigação sobre Cabo Verde em arquivos portugueses e cabo-verdianos.

Criado em 1988, treze anos após a independência do país, o Arquivo Nacional de Cabo Verde (ANCV) possui um acervo documental relativamente vasto sobre o passado colonial das nove ilhas habitadas do arquipélago. Se é verdade que grande parte da documentação produzida pelas instituições coloniais, particularmente a referente aos três primeiros séculos após a sua “descoberta”, por volta de 1460, se encontra no Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal), também é verdade que o espólio sob a guarda do ANCV permite linhas de pesquisas interessantes e diversificadas, particularmente no que ao século XIX diz respeito. 

Não sendo possível apresentar aqui todos dos fundos documentais ali existentes. Destaco, porém, os que são considerados mais importantes, mais acessíveis através dos respetivos catálogos e, consequentemente, os mais consultados:

- Secretaria Geral do Governo, constituída por livros manuscritos(1674-1954) e por papeis avulsos em caixas (1803-1927), cujos registos do dia-a-dia da burocracia governamental permitem informações sobre as mais diversas matérias;

-Administração do Concelho da Praia (1868-1975), constituído por uma série de livros fiscais, registos de testamentos, livros de Vínculos e Capelas, entre outros;

- Repartição Provincial dos Serviços de Administração Civil(1907-1979);

- Instituto do Trabalho, Previdência e Acção Social (1924-1986);

- Os livros de registo de escravos de todos os concelhos;

- Os registos eclesiásticos (baptismos, óbitos, casamentos) de todas as ilhas;

- Os fundos dos  Tribunais da Praia e da Ribeira Grande de Santo Antão (processos cíveis e crimes, testamentos, inventários post-mortem, entre outros assuntos), para só citar estes exemplos. 

Pessoalmente, e na qualidade investigador, tenho estudado o século XIX cabo-verdiano a partir dessa documentação, tendo já produzido alguns artigos científicos, publicados em revistas nacionais e estrangeiras, assim como  trabalhos de maior fôlego, sendo de destacar uma dissertação de mestrado, A Praia de 1850 a 1860: o porto, o comércio e a cidade,  defendida na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (Portugal) em 2008, e publicado em livro em 2009 sob a chancela ANCV, e uma tese de doutoramento, A Terra, a Água e o Poder na ilha de Santo Atão de Cabo Verde: um olhar a partir do Tarrafal de Monte Trigo, recentemente defendida na Universidade de Cabo Verde. 

Em relação aos arquivos portugueses, o que conheço melhor são o Arquivo Histórico Ultramarino(AHU) e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo(ANTT), onde tive a oportunidade de fazer algumas pesquisas, nomeadamente durante uma missão no ISCTE-IUL em 2018, no quadro do projeto Resistance do qual faço parte. Nessa altura, entre outros assuntos, no AHU pesquisei a documentação referente a Cabo Verde (papéis avulsos em caixas), séculos XVII e XVIII, referente às questões fundiárias e a resistência camponesa, enquanto no ANTT pesquisei fundamentalmente os Registos de Mercês, numa altura em que precisava terminar um dos capítulos da minha tese de doutoramento acerca de um dos proprietários de terras em Santo Antão nos finais do século XIX e cujas referências não tinha encontrado no ANCV.  

Tive a oportunidade de notar que, comparando com Cabo Verde, em Portugal existe uma maior cultura de pesquisas nos arquivos por parte dos historiadores, entre outras possíveis razões, talvez pelo facto de Portugal ter uma dinâmica universitária completamente diferente da nossa. Por exemplo, o facto de ainda não existir em Cabo Verde licenciaturas em História que contemplam a via de investigação e que podiam abrir o caminho para cursos de pós-graduação em História, com enfoque sobre Cabo Verde, pode explicar a pouca cultura de pesquisas nos arquivos, por parte de jovens investigadores interessados em estudar a história deste arquipélago e até por parte de alguns académicos.

Felizmente, o ANCV é cada vez mais procurado por investigadores estrangeiros interessados na história de Cabo Verde, o que de alguma forma incentiva a instituição a melhorar cada vez mais as condições de acesso à documentação ali existente, boa parte ainda por desbravar. 

José Silva Évora

Publicado em 12.06.2020