Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora
Vol. 3 (1735-1737)
João Luís Lisboa, Tiago C. P. dos Reis Miranda, Fernanda Olival
(transcrição do texto de Gonçalo Lopes, F. Olival e T. Miranda)
Lisboa , Colibri, CIDEHUS.UE, CHC.UNL , 2011

Este volume das gazetas manuscritas da Biblioteca Pública de Évora tem, como corpo central, a edição dos Diários reunidos no Códice CIV/1-7 d, correspondendo aos anos de 1735 a 1737. Juntamos aqui, pela primeira vez, uma parte de uma outra série com notícias desse intervalo (1736-1737). Trata-se de uma colecção com o título “Addições à Gazeta”,  que na BPE está arrumado logo a seguir aos “Diarios”, com encadernações semelhantes, embora guardando folhetos de mãos diferentes. O motivo para optar por fazer a edição simultânea decorre dessas duas claras coincidências materiais e da evidente complementaridade de conteúdos, bem como do facto de ambas as séries terem sido reunidas pelo mesmo colecionador antes ainda de entrarem na posse de D. Frei Manuel do Cenáculo Villas-Boas. Ou seja, não é apenas um destes aspectos que justifica, por si, a nossa escolha. Ao longo do tempo, os folhetos convergiram nos mesmos leitores e a sua leitura cruzada apresenta diversas vantagens.

O Códice CIV/1-24 d, a que pertencem as “adições”, não é totalmente publicado neste volume. Ficam de fora as notícias de 1738 que, a obedecer à estruturação dos códices dos “Diários”, serão associadas ao conjunto das “Gazetas manuscritas” de 1738 a 1740.

Com o presente volume, dão-se a conhecer folhetos inteiramente inéditos e pouco ou nada referenciados pela historiografia, contendo novas informações para o estudo da primeira metade do século XVIII. Neles se encontra notícia sobre o então ainda relativamente obscuro Sebastião José de Carvalho e Melo, futuro Marquês de Pombal, num período decisivo da sua vida. Em Maio de 1737 considera alugar as suas casas da rua Formosa ao Marquês d’Argenson, embaixador de Luís XV, mas poucos meses depois, em Outubro, morre o seu tio Paulo de Carvalho, cuja herança lhe dará uma nova condição social que lhe abrirá caminho para a Grandeza. É deste período uma viagem aventurosa de Carlos Mardel, chegando por terra à fronteira de Serpa, após fuga de Cádiz onde estivera detido (1736). Embora mais conhecida e estudada, a história da prisão de António José da Silva e sua família, no âmbito da vaga de prisões que ocorre a 5 de Outubro de 1737 (sábado) em diversas casas de Lisboa, na Calçada de Sant’Ana, num beco detrás de São Cristovão e no Paço da Madeira, é aqui descrita com novos pormenores. Sublinhamos o olhar dos familiares do Santo Ofício que irromperam nas casas suspeitas, onde as luzes estariam acesas e algumas das mulheres tinham véus na cabeça “de forma estranha com que parece estavão em sinagoga”.

Estes folhetos registam também uma conjuntura política muito conturbada, onde pontua o conflito diplomático-militar com Espanha. Este conflito não chega a conhecer hostilidades na Península, mas altera profundamente a vida na corte e no reino ao longo de pelo menos um ano, com a recomposição do Conselho de Guerra, a recruta e movimentação de novas tropas, a enorme azáfama para a distribuição de abastecimentos, acompanhada por constantes juntas had hoc e audiências régias extraordinárias. Dá-se igualmente a morte do velho Diogo de Mendonça Corte Real (Maio de 1736), que leva à reforma das Secretarias de Estado, os funerais do infante D. Carlos e de sua tia D. Francisca (Abril e Junho de 1736) e o início da crise da Academia Real da História Portuguesa, coincidindo com a publicação dos últimos volumes da Collecçam de documentos e memorias […]  (1736 -1737).

Do ponto de vista do autor do “Diario”, trata-se também de um momento marcante. Tem então lugar a cirurgia em que intervém o “cirurgião oculista” francês Jacques Daviel, famoso perito em cataratas, que não impede a cegueira irremediável e definitiva de D. Francisco Xavier de Menezes. Cabe sublinhar que este facto parece associado a alterações no próprio modo de produzir os folhetos noticiosos do Conde. Este 3º vol. do “Diario” está redigido em condições de leitura especialmente difíceis, com letras e manchas irregulares, ortografia oralizante, erros e lapsos de informação, com trocas de nomes e títulos de nobreza, erros que, por motivos diversos, se verificam igualmente nas Adicções.

De forma mais vincada do que já sucedia na edição dos volumes anteriores desta série, todo o itinerário de leitura e de compreensão da natureza e da “mensagem” do texto está associado ao processo de anotação. Os princípios a que este trabalho obedece são os já enunciados nas notas introdutórias anteriores e aprofundados no “Manual de Edição” (MIRANDA 2005b). Os ajustes feitos então têm-se mostrado adequados. As regras de transcrição e o esforço de anotação e indexação estão, pois, já suficientemente expressos. Importa, em todo o caso, sublinhar o quanto se tem mostrado decisiva a articulação entre estas diferentes etapas de trabalho. Com alguma frequência o esforço realizado durante a indexação, normalmente a última fase de preparação do volume, esclarece problemas de leitura, transcrição e identificação, nem sempre resolvidos nas notas, como questões de homonímia, gralhas ou desdobramento de abreviaturas (Maria por Mariana, Almeida por Almada, Geral por General, por exemplo).

Para a anotação, recorremos sistematicamente a fontes que nos permitiram fazer contrapontos e comparações, de que destacamos: A) Fontes manuscritas: “Novidades de Lisboa” e “Varias Noticias…” em remissões cruzadas com “Diario” e “Adicções” e pontos de vista muito distintos; B) Fontes impressas: genealogias, nobiliários, corografias, mas, sobretudo, gazetas ou periódicos coevos, a começar pela Gazeta de Lisboa .

Comparando com os volumes anteriores, o leitor notará a existência de um número maior de esclarecimentos baseados em obras não disponíveis em bibliotecas portuguesas, em resultado dos extraordinários progressos que entretanto se verificaram no acesso remoto a bases de dados digitais e na facilidade de consulta e/ou aquisição tanto de obras raras e/ou antigas, como de textos académicos recentes. Este progresso é assinalado na extensa lista de recursos digitais apresentada logo a seguir à bibliografia.

Tendo em conta os objectivos traçados desde 2006, a maior dificuldade encontrada foi a impossibilidade de operacionalizar os instrumentos de indexação automática em que entretanto se trabalhou, sob orientação de Paulo Quaresma, da Universidade de Évora. Os esforços realizados no tratamento e marcação dos textos deram ainda resultados insatisfatórios. Nesta fase, os indexadores informáticos não permitem manter um controlo intensivo da informação, nem sequer no caso dos nomes citados, onde chegámos a depositar mais esperanças, perspectivando a construção de redes de relações inter-pessoais. Em todo o caso, na indexação que hoje aqui se apresenta, há uma longa série de esclarecimentos e distinções que aprofundam o conhecimento do universo de referências onomásticas, experiência que ajudará em parte a explicar a morosidade desta edição.

Em contrapartida, entre os aspectos que, neste volume, consideramos mais positivos, está o trabalho de identificação caligráfica, já previsto no “Manual de Edição”, mas só agora proposto de forma satisfatória. Para esse resultado, tanto no que diz respeito às distinções, à originalidade e inovação metodológica da análise, como pelas soluções editoriais que aqui assinalam as diversas mãos e grafias contribui decisivamente o trabalho de Lígia Gaspar Duarte. O seu texto é fundamental para decifrar a sinalização marginal. Aí, o leitor passa a poder acompanhar as várias fases de produção dos folhetos, com a identificação das caligrafias presentes. A nosso ver, confirma-se o acerto de termos optado por uma transcrição de tipo semi-diplomático, com respeito pela grafia manuscrita, não descurando as marcas de pausas de pena e a singularidade das emendas. Para além da análise formal, esta frente de estudo fornece elementos para visualizar o número e a qualidade do conjunto dos oficiais escreventes do 4º Conde da Ericeira e da “oficina” das “Adicções à Gazeta” e/ou dos seus copiadores. No “Diario”, verificamos a coincidência entre o arranque de um novo padrão caligráfico e o fim da pausa de 1734, que D. Francisco Xavier de Meneses atribuiu a uma falha de confiança ou discrição. Torna-se, assim, plausível que a origem dessa fractura fosse doméstica. Pelo menos, as mudanças de mão registadas parecem querer indicar que semelhante suspeita teria ocorrido ao próprio Conde.